Importante

Todos os textos do blog, em prosa e verso, a não ser quando creditado o autor, são de minha autoria e para serem usados de alguma forma, necessitam de prévia autorização.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Vaga-lumes e gênios


Vaga-lume – inseto que emite luz, brilha no escuro, que possui tecidos luminescentes.

Vaga = se move, se desloca. Lume = luz, chama, labareda, fogo.

Manoel de Barros = vaga-lume.

O vaga-lume mais longevo já nascido. Está com 96 anos. Nasceu e cresceu no Pantanal, em meio àquela natureza pródiga e exuberante e não é estranho que se misture à sua fauna e flora.

Conheci sua obra de forma tardia, mas antes tarde do que nunca. Em 2010 foi lançado um volume com suas obras completas e na minha modesta opinião, trata-se de um ítem indispensável, um objeto de desejo preferencial pra quem aprecia poesia, e mais que tudo, sensibilidade, encantamento, despojamento, simplicidade não simplória.

Mas no que diz respeito a essa simplicidade que emana da escrita de Manoel de Barros, tenho uma teoria embasada exclusivamente na minha subjetiva percepção e convicção de que sua poesia, de simples só possui a aparência. Algo me diz – e a cada releitura dele isso se reforça – que por trás de tal despojamento, quase desconcertante, existe uma sofisticada elaboração que tem o cuidado de não soar complicada e obtém pleno êxito nessa empreitada. A maneira como o poeta desconstrói e reinventa palavras e a reboque delas, ideias e imagens, me faz ver nele um gênio que tem sua marca de extrema originalidade. O despojamento de Manoel de Barros contrasta com a complexidade de José Saramago. São extremos que me encantam.

Um já nos deixou, órfãos. O outro não deve tardar a imitá-lo. Mas celebremos sua arte que tanto nos toca e nos faz mais humanos, porque ela e eles são eternos.
                                                                                                                       



Desinventar objetos. O pente, por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até que
ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma.”

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul –
Que nem uma criança que você olha de ave
.”


                   Manoel de Barros                                                                  

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Homoeda


Vida, pintura em tons de vinho, bem-vindo desalinho, arremetida e queda,

moedas numa fonte, o horizonte é o antes, do nada que é depois, coice

nos distraídos, pés em cacos de vidro, vida é fuga e mergulho, é silêncio é

barulho, sopa de entulho gelada, tudo ou nada em apostas, o avestruz dá

as costas, o homem gosta e desgosta e inaugura a angústia


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Tradúzias



A palavra faz que traduz

Lança luz

sobre o que arrebata

Mas, entrementes

a palavra não sente

Só retrata



Vejam no youtube o meu vídeo com 27 haicais:
http://www.youtube.com/watch?v=1DmHzlld5XU&feature=youtu.be

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Uma palavra vale mais que mil imagens (provérbio apátrida pensado e escrito com palavras)


Penso que, para sermos críticos, legitimar isso, temos que exercitar a autocrítica. Vou então fazer ambos.

Tenho refletido e até conversado com algumas pessoas, sobre o emprego da imagem de forma interativa com a palavra. O advento da internet não inventou a imagem como ilustração de textos, mas certamente a popularizou e a tornou muito mais usual e frequente. Como na internet o manuseio de imagens e o acesso a elas é tão fácil, quem antes escrevia e se atinha só à palavra, hoje não resiste à tentação de agregar imagem ao texto. 

No Japão, os poetas escrevem haicais, que são só texto e também haigás, que são haicais ilustrados. Muitos desses têm como ilustrador o próprio autor do texto. Como o haicai se disseminou no Ocidente, sofreu as adaptações previsíveis e o uso da imagem se ampliou para a fotografia. Eu mesmo utilizo esse recurso para ilustrar alguns haicais meus.

A grande questão não diz respeito ao uso das imagens, mas ao seu abuso, sua banalização. Para nos atermos apenas ao âmbito dos blogs, território dos mais profícuos do casamento texto-imagem, se fizermos um longo e livre passeio por eles, raro será nos depararmos com uma postagem num blog que não tenha imagem nenhuma. No próprio caso do meu, não me lembro se já postei alguma vez sem alguma imagem. No máximo usei imagens em preto e branco sobre esse fundo preto.

Não estou fazendo a apologia da volta ao tempo que texto, palavra gráfica era exclusividade dos livros. A internet instaurou a imagem como elemento fundamental, de certa forma mais enfaticamente que a televisão, pela maior interatividade e também porque se pode visualizar imagens não só em movimento, o que amplia as possibilidades de fruição visual. O que se discute e questiona é a banalização. No caso da poesia, o caráter “didático” do uso da imagem, que tenta explicar o texto, como se a palavra em si não tivesse o poder de significar, de produzir imagens na mente do leitor. Parece um processo inconsciente de negar e esvaziar os dons, a força da palavra e da poesia.

Vou continuar utilizando a imagem, sempre correndo riscos e portanto sempre preocupado em evitar os clichês, o previsível, o didático. Imagem como comentário do texto sim, e também num sentido lúdico. Nunca levando a imagem a competir com o texto, distrair a atenção do leitor pro essencial que é a palavra, os versos, a poesia.


Vide bula


Palavra é ritmo e dança
Brinquedo de desmontar
Palavra é de som e ar
Aguda ponta de lança

Contida, exaltada. chula
Chicote ou doce canção
Carícia ou demolição
Na dúvida vide bula

É mapa, é lei, estrutura
É luz numa mina escura
Ou pura contradição

Mentira mais verdadeira
Verdade mais traiçoeira
Não diz sim e sim diz não





domingo, 26 de agosto de 2012

Improvisação e elaboração


No recente sarau da Confraria da poesia informal, da qual sou integrante, a parte final, dedicada à música, teve a participação de rappers de Petrópolis, dentre eles, Marcelo Moraes e Lucas Sixel, excelentes, por sinal.

Ouvindo-os lá, com bastante interesse, dizendo seus versos rimados de improviso, de conteúdo inconformista e motivação niilista, me vieram à mente os tradicionais repentistas nordestinos. Em ambos os casos é impressionante a rapidez do raciocínio produzindo instantaneidades poéticas, em contraste com a maneira habitual da grande maioria de nós, poetas, que criamos de forma mais pensada, mais lenta e sem, de certa forma, essa mesma espontaneidade exuberante dos rappers e repentistas.


RAP...REPente...me chama atenção a semelhança sonora entre essas duas palavras que designam duas formas singulares de expressão poética.

Enquanto o rap expressa uma ácida crítica social, inconformismo, o repente já tem um viés mais irreverente e leve, também crítico com os costumes, mas no qual predomina o humor. Outro traço em comum em ambos é a linguagem despojada e direta que cria ressonância tão imediata em audiências das mais diversificadas, quão imediata é a feitura dos versos. Repente e rap são instantâneos e “em tempo real”, a percussão que costuma acompanhá-las acentua o conceito de “música falada”. 

A poesia, digamos, mais tradicional, essa que é primeiro pensada e escrita e só depois de pronta é lida, ou declamada, ou como se diz agora, dita, tem tentado “ir onde o povo está”, se tornar mais palpitante e sair do papel e das telas virtuais para os saraus ao vivo, que vão aumentando em número e se popularizando.

Não sou rapper nem repentista, mas sou um poeta que admira e se fascina com essas manifestações poéticas e, ao meu modo, com um soneto “pensado”, homenageio os repentistas e ao mesmo tempo prometo vindoura e semelhante homenagem ao rap e seus bravos rappers.



Adaga


Talvez descreva as cores da bandeira
De um bom adorno tenha a serventia
Ou amenize horrores da trincheira
Será que tem função a poesia?

Cativo é o seu lugar na prateleira
da mais sofisticada livraria
O velho e contumaz chá de cadeira
na fila pra fatal taxidermia 

Roteiro da anacrônica utopia
Do salto que o temor retém na beira
Que mais a musa, o herói, que alegorias?

É sábio o repentista, que na feira
resgata o Bobo, a adaga da poesia
Cortante, quanto mais é brincadeira 


sábado, 18 de agosto de 2012

amor amore amour liebe love

Sou do clã dos poetas que teimam em recorrer à temática do amor, porque acredito que a poesia nos salva e o amor dá mais sentido ao viver e a tudo que implica nesse verbo regular transitivo direto da segunda conjugação.




sábado, 4 de agosto de 2012

O primeiro dos últimos?



A forte carga simbólica dos Jogos Olímpicos no imaginário coletivo é de chamar atenção. Desde a Antiguidade o Homem põe à prova o ideal da força, velocidade e resistência. E os tempos modernos agregaram a isso, visibilidade mundial, pressões comerciais, tecnologia. A celebração maior da excelência.



E excelência implica em autoexigência, expectativas, estresse, frustração. O ouro destinado ao herói, ao melhor entre os melhores é só para um. Honra individual e patriótica em jogo. Países que têm interesse em fazer do bom desempenho esportivo peça de propaganda e autoafirmação política. Na China, crianças com talento potencial são obrigadas pelo governo, mesmo contra a vontade de suas famílias, a ingressar em programas de formação de pequenos atletas.


O esporte é plasticamente algo belo e também emociona, mobiliza, mostra histórias de superação, sacrifícios, mas nem tudo no esporte é glamour. As pressões internas e externas pela infalibilidade que a excelência impõe não raro levam a cenas de inconformismo e desespero de quem quase chegou no cume do Olimpo e não se perdoa pela sua humanidade, que não lhe basta para reinvidicar lugar entre semideuses.


E as lágrimas que rolam molham o rosto e a medalha não acalentada e que pra ele parece nada valer.



sexta-feira, 29 de junho de 2012


A solidão é um dos grandes fantasmas que assolam o homem nesse mundo tão populoso.


O ser humano, embora essencialmente gregário, tem também sua faceta solitária, que é quando surge a oportunidade de estar apenas consigo mesmo e ter espaço pra pensar, se concentrar, até relaxar e criar. Momento inclusive de não precisar exercitar as regras constantes da convivência e suas implicações de ceder, ser paciente, escutar, se impor limites. Tudo importante, mas até disso precisamos de umas tréguas, até pra nos recarregarmos. Essa é a solidão boa e voluntária. Uma escolha.


Mas a solidão que as circunstâncias impõem é a que fantasmagoricamente arrasta correntes na mente e é temida por muitos e chega a ser estigma: solitários são vistos como gente estranha, como incapazes de manter uma quantidade razoável de laços sociais e afetivos e até mesmo como sem talento e sex-appeal pra cativar e seduzir parceiros amorosos. Preconceito especialmente endereçado ao sexo feminino. Mulheres solteiras e/ ou recém-separadas e que moram sozinhas, muitas delas podem até estar bem assim e felizes, mas são vistas como um perigo em potencial pras suas amigas casadas.


Então a solidão pode ser um estado, uma circunstância, ou um sentimento. Ou ambos simultaneamente, como no caso da solidão do isolamento, o vazio externo coadjuvante do interno. E, de outra forma, a solidão só interna, onde há a coabitação, a presença muitas vezes ausente do outro. O “sozinho na multidão”.


Seja qual for, a solidão não voluntária, ou é prisão palpável, de paredes, portas, silêncios, imobilidade, ou prisão da mente e ambas acarretam angústia, tristeza, desesperança e quebrar esse círculo vicioso faz necessário um abrir de janelas pra entrada de luz e ar. Janelas da casa e da alma. De dentro pra fora.


sexta-feira, 22 de junho de 2012

Ecologistas da alma


De tudo que vi e li na Rio + 20, apesar da multidão se acotovelando e inviabilizando uma fruição mais adequada de tudo, não foram as evidências do efeito estufa, da degradação do ar e das águas, nem mesmo das propostas de desenvolvimento sustentável que me impactaram mais. O que mais me tocou foi a poesia de Manuel Bandeira, de João Cabral, de Drummond, de Augusto dos Anjos, que quem concebeu a mostra, sabiamente imprimiu nas paredes logo na entrada das salas. Poemas que ressaltam que a ecologia humana é a mais relevante e geradora de toda a consciência da ecologia do ambiente.


Em meio a tantos recursos técnicos de ponta, feixes de laser, projeções em 3 D, tudo bonito, criativo e high tech, lá estava a boa e velha palavra escrita conquistando espaço em corações e mentes, traduzindo a seu modo tão singular, pela visão poética, a fome, a miséria, a exploração do homem pelo homem, as desigualdades sociais que levam à degradação, mais do que do ar e da água, a da dignidade humana.


O bicho


Vi ontem um bicho
na imundície do pátio
catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
não examinava nem cheirava:
engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
não era um gato,
não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
                                Manuel Bandeira


O poeta e a Poesia repercutem a consciência coletiva. São veículos potentes para induzir o desejo da mudança, porque tocam a alma e assim, comovem, mobilizam. A poesia grita sua indignação de maneira única. 
O aperto no peito que senti com a leitura desse poema do Bandeira, não foi só meu, mas de muitos, lá. Estou certo disso.
Enquanto saía da Rio + 20, pensei: mais uma vez prevaleceu a poesia e o poder que dela emana.


Quando do massacre em Eldorado dos Carajás:


Eldorado

Ditos os clichês os mais surrados
Feitos os discursos mais banais
Pérolas do óbvio aos bocados
Nau que vai a pique em pleno cais

Quando a fome aperta e o teto falta
que fagulha acende a esperança?
Ratos são tangidos pela flauta
Homens, pelo mel da fala mansa

Nesse jogo as cartas são marcadas
Onde o risco sempre é quase tudo
e a recompensa, quase nada

Bala adoça a boca ou fura o peito
Líderes falando e o povo mudo
Fila indiana em beco estreito







quarta-feira, 20 de junho de 2012

Urge

Hoje começa o inverno. Dia de deixar a poesia falar por si. Só.




Urge


Rápido, antes que o dia envelheça
Já, que a manhã pode ser que caduque
Vamos, que a tarde é repleta de truques
Vem, não esperes que a noite amanheça

Corre, que o tempo negou-se a parar
Crava teus dentes na única chance
Bate o martelo ao teu último lance
Solta esse grito parado no ar

Ri, mas que não seja um riso de hiena
Deixa a tua marca e nos diz ao que veio
Mata o leão ou te entrega na arena

Cava, que o ouro não mostra seus veios
Tão visceral quanto mais valha a pena
Vida que urge perder os seus freios


segunda-feira, 18 de junho de 2012

Particular universal


A indução é o procedimento que leva do particular ao universal: com esta definição de Aristóteles concordaram todos os filósofos. O próprio Aristóteles vê na indução um dos dois caminhos pelos quais conseguimos formar nossas crenças; a outra é a dedução (silogismo).


Venho me convencendo e comentando com amigos poetas, de que quanto mais particulares somos como artistas, mais universais nos tornamos. Vi O exótico hotel Marigold, filme inglês com um elenco só de feras, encabeçado por Judi Dench e Tom Wilkinson, que narra a história de um grupo de ingleses idosos que decide ir morar na Índia e em meio àqueles previsíveis choques culturais, acabam encontrando a si mesmos.


Para ser universal, para falar de ideias e sentimentos com o traço comum ao humano, não é preciso necessariamente ser generalista ou mesmo metafísico. Não se trata de dar receitas, pelo contrário, desconstruí-las. As idiossincrasias próprias de cada cultura, cada local, cada individualidade, resultam mais empáticas e penetrantes do que possa pressupor nossa vã ideia preconcebida.


Como alegórica moeda que é, a globalização tem seu lado perverso, que é o do monopólio cultural imposto pelo mais forte, mas seu lado luminoso é o da instintiva comunhão entre os seres humanos com suas características socioculturais preservadas, mas com a universalidade permeando isso tudo.


Um único exemplo basta para ilustrar: a música. Não importa o ritmo, os timbres e no caso de canções, nem mesmo a língua; ela toca a todos como talvez nenhuma outra forma de expressão humana. 


A poesia também funciona assim. Há poucos dias disse o poema abaixo, feito em tom confessional e ele provocou certa comoção em quem depois se disse profundamente identificado com o texto. Num âmbito mais amplo, além-fronteiras isso se preserva com boas versões e traduções.


De mudança

Vou mudar pra minha vida
Tô de mudança pra lá
A rota, meio esquecida
sumiu dentro do sofá
Teve entrada sem saída
Teve espinhela caída
Teve instinto suicida
Teve fuga e investida
Umas paixões desabridas
feito álcool na ferida
Jejuns em pleno maná
Isadora, Virna, Frida
Côte D’Azur e Irajá
Maraca, Lapa, Avenida
e Visconde de Mauá

Desde o ponto de partida
no rumo de Shangri-lá
me perdi da minha vida
zanzando daqui pra lá 

Vou mudar pra minha vida
mesmo perdendo o crachá
Vida quase acontecida
Era nunca, agora é já
Comprei passagem de ida
A volta é o mundo que dá
E em voltando pra jazida
cavar com as mãos, mas com pá

Vou voltar pra minha vida
antes que a vida me vá
que ela é muito decidida
feito um doido da Al Fatah
A alma desespremida
num corpo que inda vá lá
naquela rua florida
pegado à casa de chá
exposta e quase escondida

Pra chegar, tô de saída
e basta de blablabla
Om, namastê, saravá!


   Assistam o vídeo baseado no meu livro: http://www.youtube.com/watch?v=RwY7bTSfqpc    

domingo, 10 de junho de 2012

Tem beleza na tristeza


foto de Sebastião Salgado                                                      
                                                                                                                                                                                                  Tem beleza na tristeza? Não a pergunta, mas a afirmação, quando em vez, se interpõe no nosso caminho. Cabe aqui distinguir e entender: violência, injustiça, usurpação produzem tristeza e nisso não há beleza   alguma. A ideia de uma certa beleza emanar da tristeza na verdade diz muito mais respeito à melancolia, esse sentimento peculiar que herdamos dos portugueses. Beleza na tristeza advém do que se produz artisticamente inspirado e motivado pelas melancolias nossas de cada dia e poesia.


Isso me faz lembrar do Sebastião Salgado, nosso grande fotógrafo, cujo nome e trabalho geram controvérsias. Não pouca gente acha que Salgado glamuriza a pobreza nas suas fotografias em preto e branco e que haveria uma intenção nele de com isso extrair beleza da tristeza. Não compartilho dessa leitura. Penso que ele é um cronista sem palavras dos efeitos das mazelas sociais e seu talento acaba “estetizando” a miséria e a tristeza que dela transborda.


Mas o que se depreende de uma obra de arte não é monopólio de quem a cria e o entendimento e os sentimentos que ela produz pertencem a quem a frui e não mais ao seu criador. A cada um é facultado o arbítrio de ver beleza onde e no que se queira ver, seja numa foto do pôr-do-sol, num texto erótico recheado de palavras chulas, numa tragédia grega ou num dramalhão mexicano. 


E quem sabe, verão alguma beleza nesse soneto triste...




Pétalas de pedra


Depois de tanto riso e derramadas juras
Na última é febril borrasca de verão
Um vento traz enfim o outono e a solidão
E sopra penetrante a lança da amargura

Veneno que corrói sem dó nem piedade
Um cálice, não mais, é o justo fel que basta
E o campo mais florido o vento então devasta
Degreda o coração pr’uma prisão sem grades

O inverno cobrirá por ordem do deus Crono
de gelo glacial as flores do abandono
que crescem no jardim sem dono do meu peito

E fósseis que serão, em milenar futuro
as pétalas de pedra, num buquê tão duro
talvez ainda lembrem um amor-perfeito


   Assistam o vídeo baseado no meu livro: http://www.youtube.com/watch?v=RwY7bTSfqpc    


segunda-feira, 4 de junho de 2012

Lar



Contas

É bom de ver
o amor crescer
e aos poucos ir tomando forma
E se preciso for
subverter a norma
que tolha o seu vigor
Uma bolha explode em flor

E ainda que fira o espinho
o carinho do perfume
prevalece até o cume
suavizando o caminho
na apaixonante escalada
rumo à Terra Abençoada
onde o sol não vai se pôr

O amor só quer amar
Lançar suas velas ao mar
Percorrer os oceanos
Não importa quantos anos
a viagem vá durar

Se é mais sólido que o ar
será sempre verdadeiro
Elo vital de algo inteiro
como as contas de um colar
as contas de um colar
contas de um colar
de um colar
um colar
colar
lar


quinta-feira, 24 de maio de 2012

Equação poética

Num poema erótico, de amor, é mais comum a narrativa na primeira pessoa, pelo óbvio fato de ser temática que remete quase de forma inevitável ao eu. Os textos que fogem a este padrão são quase exceções. O alvo desse amor e paixão pode ser foco exclusivo do texto, como num retrato, mas a exclusão do narrador, ou seja, sua ausência “da cena”, dota o poema de ares de idolatria, voyeurismo, mais que de amor, de parceria e troca.
O meio termo é um caminho, onde o objeto do sentimento-desejo está no foco, no cerne do texto, sem a exclusão do narrador e então o outro e o eu são contemplados (no duplo sentido da palavra) e a primeira e a terceira pessoa do singular dão lugar à primeira pessoa do plural. Dessa dinâmica brota o calor e empatia do leitor com o poema.
O eu do autor está presente, mas como fator de uma soma e não como uma unidade indivisível e “imultiplicável”.



Pas-de-deux


Almas nuas ao despir roupas carnais
entrelaçam-se e ficam muito juntas
O fluido corporal que convida e unta 
não se resume aos instintos animais



E é por ser prazer da alma liquefeito
que o gozo é êxtase ainda que breve
E quanto mais profundo tanto mais leve
Como cabe a todo pas-de-deux perfeito



Ficas zonza porque a alma quer decolar
Mas a matéria lhe rouba combustível
Corpos em fusão não vão se descolar



Denso e sutil pulverizando o impossível
Bom ser infantil, sugar o polegar

e ousar tentar fruir o inatingível  


                    Assistam o vídeo baseado no meu livro: http://www.youtube.com/watch?v=RwY7bTSfqpc    

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Interno e externo


Mais um poema que conta uma história. Dessa vez em parceria com a pintura expressiva de Guilherme Constantino.


Enquanto sonha


O corpo de aluguel não vem sozinho
A alma que o habita é de graça
A bruta criatura que o abraça
não sofre a economia de carinho

O verbo amar é o quarto conjugado
O gozo simulado é pra esconder
o verdadeiro gozo que é ter
no escuro enfim seu príncipe encantado

Enquanto sonha afia o canivete
Não ser mera tragédia das manchetes
é o sonho mais palpável do momento

E a tara que mais pede a clientela
é a noiva virgem das telenovelas
que um dia ela usará no casamento