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quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

As palavras e seus dons




AUTOPSICOGRAFIA

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
que chega a fingir que é dor                        
a dor que deveras sente.

E os que leem o que escreve,
na dor lida sentem bem,
não as duas que ele teve,
mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
gira, a entreter a razão,
esse comboio de corda
que se chama coração.
                                        Fernando Pessoa


As palavras têm dons. De esclarecer, informar, encantar, ensinar, iludir, confundir, incomodar, consolar, comover, demover, inspirar, agredir, acarinhar. Tais e tamanhos efeitos têm como emissor e receptor o homem. Então a palavra é só mediadora, ponte, veículo. E quem as manuseia é que na verdade tem os dons, quer do êxito na mensagem ou da desastrosa inabilidade que as faz fracassar. E os receptores, seus coadjuvantes, a capacidade ou incapacidade de entender e interpretar de forma correta.

Fernando Pessoa, um poeta hábil e inspirado como pouquíssimos, volta e meia é fonte de erros de interpretação da sua sutil e elaborada escrita. Com este poema, Autopsicografia, ele, na verdade não diz que os poetas mentem, que fingem. Pessoa, na verdade diz que o delírio do poeta o faz não distinguir bem o real da fantasia. O que ele quis dizer é que mesmo quando o poeta narra algo real e no qual ele acredita, pode soar como fantasia, pela aura que os poetas têm.  É um poema que costuma ser entendido ao pé da letra e então fica uma impressão meio generalizada de que ele “denuncia” que os poetas são mentirosos.

Outro equívoco que Pessoa gera é em outro poema famoso dele: Navegar é preciso. Ele diz:
Navegar é preciso, viver não é preciso
A princípio parece querer dizer que viver não é necessário, mas o sentido de preciso aqui é de exatidão; Navegar é exato, viver não é exato.

A riqueza das palavras pode dotar de dois gumes a lâmina semântica e o corte raso ou profundo que penetra a carne do entendimento.

Vide bula


Palavra é ritmo e dança
Brinquedo de desmontar
Palavra é de som e ar
Aguda ponta de lança

Contida, exaltada. chula
Chicote ou  doce canção
Carícia ou demolição
Na dúvida vide bula

É mapa, é lei, estrutura
É luz numa mina escura
Ou pura contradição

Mentira mais verdadeira
Verdade mais traiçoeira
Não diz sim e sim diz não