Importante

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sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Poesia além dos poemas


A gente percebe poesia não só em poemas. Na Natureza, num gesto, num som, numa melodia, mesmo em palavras sem prévia intenção poética, em outras formas de arte também.
Chico Buarque, em um dos seus muitos lampejos diz: 

Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia 
catando a poesia
que entornas no chão

O apaixonado vê poesia na musa que talvez ela não tenha intenção nem consciência de emanar.
O cinema, arte complexa, convergência de várias artes, é um veículo frequentado pela poesia. Recentemente mencionei Blade Runner, aludindo a isso. Hoje falo de um outro predileto meu, Asas do desejo, do alemão Wim Wenders, o mesmo de Paris, Texas e Buena Vista Social Club, entre outros e que narra a saga de um anjo que se encanta com uma mortal e abdica da imortalidade para poder consumar carnalmente a sua paixão. Anos depois foi refilmado numa produção americana, com Nicolas Cage e Meg Ryan, como Cidade dos anjos, com maior sucesso de bilheteria e menor envergadura artística.
Asas do desejo é poesia em forma de cinema. Não é o único filme da caudalosa produção mundial que poderia ser descrito assim, mas tem todos os elementos que o fazem assim.
O roteiro, a fotografia em preto e branco, a música envolvente e que pontua o clima, as falas em off do anjo narrador e seus diálogos com um outro anjo sobre a condição humana, os monólogos-pensamentos da trapezista que o anjo tem poder telepático de “ouvir”, enfim, o filme respira uma atmosfera poética que inspira. As imagens, sons, gestos e palavras injetam a poesia que transborda e nos contagia a alma, como num bom poema.


Despertar


O anjo se sente sozinho
Nem o vinho lhe traz paz
Imortal, vive demais
Condenado a não ter fim

Uma estrela nasce agora
Outras, prestes a apagar
Eras feito meras horas
Amplidão é um só lugar

Sem volúpias, sem urgências
Poder tudo e nada ser 
Seus prodígios e ciências
trazendo um quase prazer

Quisera ser bem mortal
No sangue sentir sabor
Chorar e rir por amor
Viver o essencial 

Querer, sem poder, morrer
Sua sina não querida
Sonho vão de eterna vida
com a vida que iria ter

Foi súbito o despertar
Mortal se viu de repente
Com gosto e cheiro de gente
Sonhou ou está a sonhar?


Assistam o vídeo baseado no meu livro: http://www.youtube.com/watch?v=RwY7bTSfqpc    

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Belezas e belezas



Gosto de retomar, recorrer a certos temas. Caetano Veloso um dia disse – e concordei – que poesia a gente não lê, ou não deveria ler como quem lê bula ou relatório (essas palavras aí já são minhas mesmo, mas a ideia é semelhante) e sim com vagar, fruindo, sem pressa e sobretudo relendo e relendo.

Linguagem supressora que é (não me canso de reiterar isso), a poesia é economia de meios, é desfiar de metáforas, é construção de viés que a prosa quase nunca proporciona, ou seja, é ver a vida, o mundo, os sentimentos, sensações e percepções por ângulos inesperados.

Mas o que dentro desse contexto me ocorre pra compartilhar é o “belo” na poesia. Pra muitos, beleza e poesia são praticamente sinônimos. Talvez isso seja uma meia verdade. Seguimos milenarmente a tradição dos ideais gregos de beleza e isso não se restringe ao belo anatômico humano. Então nossa herança estética é essa e isso nos leva às (muitas) vezes ao estranhamento do “não belo” na poesia.

Um crítico de arte inglês, analisando a obra de Picasso, disse algo expressivo: “Picasso desconcerta e nos faz colidir com a preguiça da nossa rotina.”

Não posso me renegar como poeta que busca o belo, mas isso não faz de mim um artista que conserva o leitor sempre no seu mesmo lugar. Penso que a arte quando é tocante, mobiliza, impacta. E impactos tiram do lugar, são perturbadores e assim,  fazem pensar e questionar.

Alguns poetas me vêm à mente: Maiakowski, Federico Garcia Lorca, Augusto dos Anjos, Rimbaud. Na sua essência, a poesia deles mergulhou e descreveu agruras, angústias, desespero, violência, injustiça, vazio, toda gama de paixões humanas que deu uma dimensão não só universal, como também um testamento do lado menos luminoso e sublime da nossa condição humana.

E eles atingiram o belo, não esse que vem pela leveza, luz, cores, contemplação, prazer, mas pela intensidade, veemência. O aforismo “tem beleza na tristeza” se aplica a isso. Mas não só na tristeza. Tem beleza no que não aparenta na superfície. Tem beleza na simplicidade mas também em certas complexidades.

A beleza do ideal grego nos encanta mas tem muita beleza subjacente na escrita bem construída que mexe com a gente. O belo não é só o que nos confirma. Ampliemos o conceito do belo.  Arrisco afirmar que se é tocante, mobilizador, é belo.


Mesmo que não tenha arco-íris, pôr-do-sol, sorriso, paz e sentimentos nobres.
                                                          

sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Razão emocionada, emoção racional




De quando em vez, conversando, me sinto impelido a falar sobre meu processo de escrita, o que busco, do que fujo ao escrever e criar.

E a clássica moeda com suas duas faces opostas é metáfora e tema onipresente: razão X emoção. Os artistas em geral e em particular os poetas lidam com que matéria-prima e com que frequência e em que proporções?

Gosto pessoal varia. Há quem valorize a arte resultante da pura e exclusiva emoção. Há quem, em oposição, prefira a razão como norteadora nesse processo. Eu, particularmente não entendo essas duas forças como excludentes e nem aritmética de percentuais de cada que devem, podem ou não podem ser agregados.

Então meu processo de construção de textos é basicamente assim: o fio condutor da narrativa e da minha criação é muito racional e isso pode ser notado na lapidação de sonoridades, no encaminhamento de pulsações, no lidar com a palavra não só a considerando em seu aspecto semântico, mas também  enquanto significante sonoro. 

Mas tenho sempre em perspectiva que este processo não precisa  fechar as portas para impedir que a emoção penetre e diria que este é um dos pilares que sustentam meu prazer da escrita, imprimir a meus textos o zelo e o gosto pela forma, pelo som, pelos jogos de palavras, simultaneamente ao escoar dos sentimentos de modo a que eles permeiem e se interpenetrem na forma, ideia e emoção, pensamento e sentimento fundidos na medida do possível.

Nem é uma convivência entre "opostos". É como se ambos fossem uma coisa só, uma coisa estando latente dentro da outra.
Expurgar um pra que só fique o outro não costuma resultar na melhor poesia.  Poesia não lapidada, não construída de modo a justificar o dom que a poesia tem de ser linguagem singular que fala como nenhuma outra, se só movida pela emoção é um vaso tosco, poder ter até alguma funcionalidade, mas abre mão de ser singular. Por outro lado, um poema que só exibe técnica, razão e artifícios não toca, não perturba e nem enternece.

Como poeta, busco sempre essa dualidade e essa busca me move e provoca. Quando me dou conta de que um poema que escrevi resultou nessa moeda de duas faces, razão e emoção num idílio, fico contente.

Na arte, na vida, no amor, há que haver os sentires com a razão e os pensares com a emoção. Senão  seremos sempre só fragmentados e nosso partido será sempre o do coração partido.
          
 
                        

sábado, 7 de novembro de 2015

Emulando



Como tudo na vida, escrever também tem seu preço e seus riscos. Escrevi um poema como se fosse uma mulher. Por sinal, este não é o primeiro assim que escrevo.
Não se trata aqui de se fingir de mulher, se passar por uma, até porque o autor, masculino, assina o poema. Trata-se, sim, de exercitar esse discurso do feminino, em parte acessando a porção feminina da minha alma e em parte fazendo um exercício mesmo de imaginação.

Chico Buarque notoriamente faz isso e o faz muito bem.

Os riscos aos quais me referi acima, são de perder a medida da diferença entre uma mulher escrever e um homem escrever como se fosse a mulher a falar. Perder essa medida pode resultar em algo um tanto caricato e a 
intenção com o poema não foi fazer uma caricatura.

Quando nos deslocamos de nós mesmos para exprimir outro, quando tentamos encarnar um personagem, real ou fictício, esse despir-se de si para vestir outro - que nunca é completo, porque não conseguimos tamanha depuração e no fim um pouco de nós está lá presente - é sempre uma potencial armadilha e é preciso estar atento a isso no momento de elaborar o texto.

“O texto feminino não se constrói em torno de um Grande Sentido, mas em torno de minúcias, banalidades, desvios, multiplicação de sentidos minúsculos, do corpo, do gozo e das paixões". Do lvro “O que é escrita feminina”, de Lúcia Castelo Branco, psicanalista e doutora em Letras.



Dom

Esse homem forte e terno
Céu do meu inferno
me ataca pelos flancos
Saqueia saltimbanco
Lhe assino cheque em branco
Faz repicar meus sinos
com alma de menino
e truques de um Houdini
Me ama e vandaliza
Meu corpo à sua guiza
Esse homem não promete
Só cumpre e sem confete
Garimpa, perigoso
até achar meu gozo
Me deixa do avesso
e sai dizendo: un beso
No rastro paira seu cheiro
Um dom de pioneiro
de toda a gostosura
que sempre me inaugura


domingo, 1 de novembro de 2015

Tempo tempo tempo


O tempo, tema muito recorrente na minha poesia, é uma fabulação concreta de algo abstrato. As ampulhetas e os relógios digitais atômicos registram unidades disso e nos fazem crer nessa concretude.


Crono é um escravagista cruel das nossas vidas, ações, destinos. Cada vez que temos o lampejo de percepção de sua passagem, seu avanço, angustiados, estremecemos.
E assim nos apegamos a segundos, minutos, horas, dias e anos e séculos e eras e vivemos em função desses fragmentos mensuráveis.

O tempo acelera ou ralenta de acordo com nosso tédio ou fome sôfrega de viver. Nosso tempo interno, chamado tempo paradigmático, muitas vezes se revela incongruente com o chamado tempo cronológico. Nosso ritmo interno, nossa psicologia briga com o relógio e dessas refregas sempre resulta a sensação de perda e impotência diante do inexorável. É o triunfo de Crono sobre nossa natureza mortal e impermanente, nossa fugacidade.

Um andítodo humano pra essa opressão contínua é “congelar” o tempo com alguma vivência marcante e memorável, que proporciona transitórias sensações de o tempo parar, eternizar o momento pra que possamos fruí-lo de forma plena em sua pequena grandiosidade.

E depois nos resta a memória.