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sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Considerações "haicaicas"

"O Sentido e a essência não se encontram
em algum lugar atrás das coisas,
senão em seu interior, no íntimo de todas elas."

Hermann Hesse


O haicai é um micropoema de apenas três versos, de característica marcadamente contemplativa da Natureza, surgido no século XVI, no Japão e que vem se espalhando por todo o mundo do século XX em diante.

Ao longo da história da prática, e inclusive na atualidade, são incontáveis os mestres, monges e leigos que se dedicaram a expressar de maneira poética o pensamento zen.

Ele ensina que o universo revela-se totalmente novo a cada instante. A matéria poética do zen é este instante presente, que não se pode agarrar, no qual a linguagem ainda não interferiu. A poesia zen expressa a identidade e a unidade de sujeito e objeto a cada instante, é o dharma, a mente de Buda manifestando-se espontaneamente em cada fenômeno.

Ao sol da manhã
uma gota de orvalho
precioso diamante.

Matsuo Basho (1644-1694)


O haicai é uma das formas poéticas que mais exercito.
Muitos leitores em geral e leitores meus em particular não conhecem esta forma poética.

O haicai, como se apresenta nos dias de hoje e no Ocidente, ganhou características próprias, não enfocando, por exemplo, necessariamente só a Natureza, as coisas concretas.  Seus preceitos são mais maleáveis que o haicai original japonês.

No meu idiossincrático e sincrético ponto de vista estético, acho leniente essa maleabilidade que tolera variações métricas e temáticas, posto que, afinal, somos ocidentais, não temos escrita ideográfica, não somos descendentes de samurais e nosso exercício poético é sobre uma adaptação, uma coopção, diria até uma corruptela da forma pura. (Os autores ocidentais mais tradicionalistas preferem chamar esses haicais ocidentalizados de poetrix.)

Creio que de outro modo, seria imitação e consequentemente o resultado seria o pastiche. Uma analogia que me ocorre  - me perdoem a irreverência -  seria um monge zen tentando sambar.

Dois “haicaicos” brasileiros pra mim são referências: Millôr Fernandes, dramaturgo, cartunista, tradutor, escritor e gênio e Paulo Leminski, professor e poeta hoje mui justamente cultuado. Millôr é influência confessa minha, em tudo o que fez, pela sua perspicácia, seu humor corrosivo com as instituições, seu senso de ritmo e sonoridade (que sempre busco). Ele tem um livro de haicais que ele mesmo ilustrou e que considero precioso.

Leminski é um caso atípico de referência reversa, porque só vim a conhecer sua obra há uns poucos anos, quando eu já tinha escrito quase duzentos haicais. Sinto uma afinidade temática, estética e existencial muito forte com ele, mas, ao contrário do que várias pessoas me dizem e até paradoxalmente, não vejo significativas semelhanças entre nossos textos. No entanto, meu encantamento com o que ele produziu passou a ser inspiração pra mim.

Eu te fiz agora
Sou teu deus, poema
Ajoelha e me adora

Paulo Leminski



Pra mim, haicai é exercício de economia. Dizer o máximo com o mínimo de recursos. Poesia, assim vejo, é a linguagem da supressão e o haicai é a poesia de supressão por excelência e na sua forma mais aguda. Um haicai deve surpreender, ser um flash, comentar, refletir, cutucar o ombro do passante que olha pro chão e fazê-lo dar de cara com algo inesperado, pintar um quadro, verbalizar um insight, um aeroplano que puxa uma mensagem, um recorte de notícia de jornal, uma vinheta, uma risada, um acorde, um salto mortal.

Ilustração em nanquim de Ana Eliza Frazão


sábado, 12 de novembro de 2016

Arte e revoluções


Em tempos de exaltação da modernidade veloz e voraz, que dilui, mastiga e descarta, rendo uma pequena homenagem aos anos 1950 e 1960, quando, primeiro os beatnicks e depois os hippies, constestaram o stabilishment, transgrediram normas, sonharam utopias na prática, adotaram On the road, de Jack Kerouac  (agora transformado em filme por Walter Salles) como bíblia, apreenderam o humanismo existencialista de Jean Paul Sartre, ressaltaram o papel transformador da arte, adotaram o Ahimsa do Mahatma Ghandi, a resistência pela não violência, o desapego material do budismo e do hinduísmo, as flores nas bocas dos canhões, (no Brasil, o inesquecível Dom Hélder Câmara era a síntese de tudo isso).


Enfim, com toda a diluição pelo que tudo nesse mundo passa (George Harrison compôs All things must pass), a essência disso perdura e como Milton Nascimento e Fernando Brant disseram, nada será como antes, o mundo não foi mais o mesmo desde então, por boas e más razões e fico me perguntando se hoje, por exemplo, existiria o Greenpeace e todo esse movimento de consciência ambientalista se não fossem nossos heróis e anti-heróis dessa época, um Mohamed Ali sendo preso por ter se recusado a matar irmãos de outra nacionalidade na guerra do Vietnam.



Então, como sou só um poeta, faço uma singela e poética homenagem a esses tempos singulares e marcantes, de hedonismo libertador, do sonhar um mundo mais justo, o Paz e Amor que pode ser que nunca se estabeleça, mas que só buscar já vale a pena e nos faz mais humanos, emulando a pop art de Andy Wharol e a irreverência rebelde dos poetas marginais.






sexta-feira, 4 de novembro de 2016

Poetas são alados



Os mitos têm duas vias.  São espelho de uma cultura, da sua cosmovisão e ao mesmo tempo contribuem para estruturar, codificar sua ética, conduta. Mitos tanto são redentores como balizadores do que existe de obscuro na natureza humana.

Dentre os redentores, tem proeminência o herói, seja divino, como Hércules ou humano, como Perseu, arquétipos da eterna busca humana pela perfeição, numa mistura de retidão de caráter com bravura destemida.

A mitologia não é muito pródiga em poetas. Então temos que buscá-los na vida mortal e terrena mesmo. Ovídio, Homero, Safo de Lesbos e Píndaro, entre outros, são nossos heróis em carne e osso, que assumiram o papel de narradores e perpetuadores dos mitos e abriram caminho para a poesia moderna, esta nem sempre envolta em halo heróico.

O liame que existe entre o herói e o poeta é bem expresso no mito de Ícaro. O homem que quis ser pássaro e o poeta se lançam no vazio. Se aventuram, um nos ares e os outros no desconhecido das metáforas, versos e lirismos.

É como se, para Ícaro e para os poetas, o fundamental fosse o caminho e não a meta. A morte de Ícaro, apesar de obviamente trágica e consequência de seu fracasso, foi tão poética quanto sua tentativa.

Com os poetas ocorre algo similar, guardando-se as devidas proporções.  Ao poeta, mais interessa que seu texto seja mapa, inventário de suas emoções e vivências, que lenitivo e panacéia pra suas dores e angústias. O poeta se salva na escrita e não encontrando o pote de ouro no fim do arco-íris. Assim como Ícaro legitima sua empreitada no voo, sua exuberância está nisso, a morte só tem relevância enquanto parábola sobre a imprudência.

Bendita imprudência de Ícaro e dos poetas, que nos toca pela via da reinauguração em nós do sonho,  da nossa necessidade visceral de sermos impulsionados por ele.

Esse paralelo entre Ícaro e os poetas resultou neste soneto:


Saga

Tão destemido, Ícaro decola
no rumo tão incerto quanto audaz
Não é o gesto heróico dos mortais
mas a ancestral vertigem que o assola

Frágil bem sabe a cera de suas asas
Que o inclemente sol vai derretê-la
Contudo alça o seu vôo até as estrelas
como se fosse o Cosmo sua casa

A queda é o previsível fim da saga
Mas a busca ultrapassa a própria meta
e vai além do oceano que o esmaga

No seu retorno o eólico poeta
mergulha em fogo e luz que se propaga
a clarear os céus de toda Creta
            
             


assistam no Youtube o vídeo com animação do meu poema circular "Continuum"

                                          http://www.youtube.com/watch?v=X0jPVdpdk7w